Ao todo são 2.946 mil reservatórios com algum risco de rompimento no território nacional, e especialistas alertam que o Brasil precisa rever sistema de segurança de barragens.
O governo do Rio Grande do Sul monitora a Usina Hidrelétrica (UHE) Bugres, cujo risco de rompimento é iminente. As hidrelétricas 14 de Julho, que já tiveram rompimento parcial, em Bento Gonçalves, e Dona Francisca, em Nova Palma, além da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Salto Forqueta, em São José do Herval/Putinga, estão em nível de alerta. Ou seja, exigem providências para manutenção das condições de segurança.
De acordo com Alexania Rossato, integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), os extremos climáticos, que têm se intensificado no Brasil, e provocaram a destruição de municípios inteiros no Rio Grande do Sul nas últimas semanas, trazem uma preocupação extra aos brasileiros que vivem no entorno das barragens com risco de rompimento em todo o país. “Será que estrutura destas obras está preparada para chuvas severas como as que atingiram os municípios gaúchos?”, questiona.
O Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB) aponta que existem, pelo menos, 26 mil barragens no país, sendo que 2.946 delas apresentam algum grau de risco de rompimento. Ao todo, um milhão de pessoas vivem em áreas ameaçadas pelo rompimento desses reservatórios. “São estruturas antigas que não comportam grande quantidade de chuvas. Quando rompem, quem mais sofre, como sempre, é a população mais pobre”, alerta Alexania. Segundo a dirigente, existem milhares de barragens não vistoriadas e elas são um perigo, não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil.
Apesar disso, em 2019, o governador Eduardo Leite (PSDB) revogou o decreto que regulamentava a Política Estadual dos Atingidos por Empreendimentos Hidrelétricos no Estado do Rio Grande do Sul. A lei previa justamente a implementação de medidas de segurança e reparação para comunidades que vivem próximas aos empreendimentos. Ou seja, era um instrumento legal que poderia ser usado para garantir a proteção da vida dos atingidos a partir de ações de fiscalização, criação de planos emergenciais e envolvimento da população na formulação de políticas para a prevenção de desastres, entre outras garantias.
Deterioração das barragens
Alexania explica que, hoje, a situação dos atingidos é de grande apreensão. Pois, à medida que as chuvas se intensificam, as águas penetram e encharcam os solos, chegando até as represas, aumentando seu volume e provocando o transbordamento. Segundo especialistas, outra consequência dos eventos extremos é a forte infiltração de água na estrutura das barragens, o que pode dissolver partes sólidas de sustentação. Vale destacar que o impacto desses eventos é cumulativo e que alguns municípios do Rio Grande do Sul já foram atingidos três vezes por grandes enchentes somente no último ano.
Leonardo Maggi, também integrante da coordenação do MAB, explica que são muitos os riscos associados: chuvas intensas, falta de fiscalização e até estruturas de barragens abandonadas. “Um exemplo é a barragem da Lomba do Sabão, que fica na divisa entre os municípios de Viamão e Porto Alegre. É uma barragem feita nos anos 1940, que há 10 anos foi desativada e, desde então, está abandonada pelos prefeitos neoliberais que se sucederam aqui na capital”, explica. O dirigente afirma que o risco cresce com os atuais eventos extremos.
“Então, essa mistura de precarização, de abandono dessas estruturas, de irresponsabilidade, de falta de fiscalização do Estado transforma o entorno das barragens em um local de exclusão, um local de sofrimento, um território de sofrimento, para o povo que vive perto dessas estruturas”, denuncia Maggi.
Regina Alvalá, doutora em Meteorologia e diretora substituta do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), destaca que, muitas barragens no Brasil estão próximas de áreas densamente urbanizadas, como no estado de Minas Gerais e na região norte do país.
“Então vamos precisar realmente de estudos, de análises que, de fato, considerem esses cenários de eventos mais extremos, para pensar em planos de prevenção e minimizar, por exemplo, os impactos que eventos climáticos possam ter sobre essas barragens, especialmente as de rejeitos de minério. Sobretudo, as que são muito próximas de áreas mais urbanizadas”, afirma a cientista.
Os coordenadores do MAB ressaltam que a engenharia das barragens foi projetada levando-se em consideração estatísticas históricas de pluviosidade que eram muito diferentes do cenário atual. “Tem uma nova realidade de chuvas extremas concentradas, uma nova situação que não estava nas estatísticas daquela época em que as grandes barragens foram idealizadas. Portanto, todos os empreendimentos com barragens, sejam de hidrelétricas, para abastecimento de água ou de rejeitos, todos eles precisam rever os seus sistemas de segurança para contemplar a nova realidade climática”, defende Gilberto Cervinski, integrante da coordenação do MAB. Ele explica que existe uma margem de segurança nos projetos de barragens, mas que leva em consideração estatísticas da normalidade. “Agora é uma situação de anormalidade e, nessa nova realidade, não dá para afirmar se elas são ou não seguras. Como a gente não sabe exatamente onde vão ocorrer as próximas grandes chuvas, todas elas devem ser analisadas”.
Plano de adaptação às mudanças climáticas foi engavetado no RS
Leonardo reforça que, no caso dos municípios gaúchos, o problema ambiental causado pelas barragens é agravado pelo desmonte das políticas ambientais. Além de ter revogado a Política dos Atingidos no seu mandato anterior, o governador Eduardo Leite reduziu o orçamento para a Defesa Civil, engavetou a Política Estadual de Gestão de Riscos de Desastres e ignorou medidas de mitigação dos efeitos e de adaptação recomendadas por cientistas contratados pelo próprio estado. Nem as enchentes que atingiram o Vale do Taquari (RS) no último ano, que deixaram dezenas de vítimas fatais, motivaram grandes esforços de prevenção. “Em oito meses (desde a última enchente), nenhuma casa foi construída e as ações de socorro planejadas foram completamente incapazes de salvar vidas agora. Então, a estrutura de estado não tem aprendido com os eventos climáticos?”, questiona Maggi. “Essa situação que vivemos também é fruto da boiada que estava passando no governo Bolsonaro, com o desmonte da legislação ambiental. Essa boiada que passou hoje afeta milhões de brasileiros e milhares de gaúchos”, complementa.
O dirigente ainda associa à má gestão pública os transbordamentos da capital gaúcha, pois, na década de 1970, foi inaugurado o sistema de contenção das cheias dos rios Guaíba e Gravataí, com 14 comportas e 23 bombas de sucção. O sistema foi projetado para suportar a elevação do nível das águas dos rios em até seis metros. “Mas com uma chuva de 5,30 metros o sistema já se rompeu. Rompeu por quê? Porque não suportou 20 anos de governos municipais que não fizeram a manutenção, que não fizeram o devido acompanhamento desse sistema anti-cheias. Das 24 bombas instaladas, só quatro funcionaram. Isso mostra o nível de abandono do sistema”, argumenta Maggi.
O futuro climático previsto por cientistas se transformou em presente e exige que cidades reduzam vulnerabilidades
Para Alvalá, o caso do Rio Grande Sul confirma previsões da ciência do clima para um futuro que se converteu em presente. “Até praticamente o final da década passada, a gente usava o verbo conjugado no futuro. No futuro, os eventos climáticos vão ficar mais intensos, mais frequentes. E o que efetivamente vemos nessa década é uma confirmação do que foi anunciado, os eventos já são mais extremos”, destaca.
Segundo a pesquisadora, tudo indica que esses extremos vão ser cíclicos. “Tivemos chuvas bastante expressivas no estado no mês de junho de 2023, com 116 mortes, depois em setembro, com 54 mortes. Em novembro, as chuvas provocaram mais cinco mortes e agora testemunhamos esse desastre, que ainda está acontecendo, com centenas de vidas perdidas. Então, no intervalo de menos de um ano, as tragédias foram se repetindo. Já é inequívoco que as mudanças climáticas aconteceram. O planeta está mais quente e, obviamente, os desastres são mais severos. A gente está agora olhando para a questão das enchentes, mas a gente pode olhar também para o outro lado: têm regiões que estão sendo mais impactadas pela escassez de chuvas”, analisa Alvalá.
Há também uma avaliação de cientistas da área de que, na verdade, vários eventos influenciaram no desastre gaúcho: uma frente fria, ondas de calor, seca na Amazônia e o fenômeno El Niño, que – combinados com a devastação ambiental no território – acabaram agravando a situação e resultando em tantas vítimas fatais.
Para Regina Alvalá, as mortes não são consequência apenas dos eventos ditos naturais, mas de uma combinação de fatores. “O que a gente tem que olhar? A ameaça tem aumentado, certo? Só que o risco de desastres, ele é uma combinação da ameaça, da exposição, da vulnerabilidade, da capacidade ou não de lidar com os desafios, mitigação, etc. Então, se aumentou o nível da ameaça, que é a chuva intensa, se não reduzir a vulnerabilidade e a exposição, obviamente, os desastres vão ser mais impactantes.
A cientista explica que esse é o dever de casa que a maioria dos gestores públicos ainda não fizeram: os planos de adaptação para lidar com eventos mais frequentes, embora o Brasil tenha avançado muito na última década no que diz respeito à ciência de desastres. “A própria criação do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) é o exemplo concreto de que estamos conseguindo monitorar e alertar, mas precisamos agora de política de adaptação. No caso desse evento do Rio Grande do Sul, nós já apontamos o risco das enchentes no dia 29”, afirma Regina. Segundo ela, porém, para que os alertas salvem vidas, os municípios precisam levar os dados em conta para executar políticas de moradia, planos de emergência, evacuação e gestão de riscos.
Ciência de desastres tem salvado vidas no Brasil quando pesquisadores são ouvidos
De acordo com a diretora, apesar do cenário estarrecedor provocado pelos extremos climáticos, é preciso celebrar os casos em que a ciência já ajudou gestores públicos a proteger vidas. “Tem conhecimentos que são gerados aqui que têm sido realmente incorporados pelo poder público no contexto, obviamente, das especificidades de cada município ou instância de gestão”, afirma.
Como exemplo, Alvalá cita os caso de Santos, no litoral paulista, que tem usado as projeções climáticas no seu planejamento urbano, tendo em vista a questão da elevação do nível do mar. Outro município que tem investido em prevenção, segundo a pesquisadora, é Petrópolis. “Então, já percebemos que Petrópolis investiu, principalmente depois de 2022, em várias ações de segurança. As chuvas do final de março deste ano resultaram em mais de 500 deslizamentos de terra no município, mas eles conseguiram estabelecer 67 pontos de apoio, o que garantiu a proteção de muitas vidas. Imagine se, nesses 500 deslizamentos de terra, em metade deles a população ainda estivesse ali nas suas moradias? Poderíamos ter tido um número de mortes muito grande. Foram quatro mortes registradas durante esse evento. Não deveria haver nenhuma morte, mas esse número poderia ter sido maior, tendo em vista os desastres que já aconteceram em anos anteriores, causando centenas de mortes. Podemos dizer, portanto, que o monitoramento, os alertas e os planos de evacuação tiveram um resultado positivo”, concluiu.
Política Nacional dos Atingidos por Barragens
Para além das políticas de adaptação e mitigação às mudanças climáticas, os coordenadores do MAB defendem que os governos implementem também as políticas de direitos dos atingidos em vigor no país (sejam as leis estaduais ou o marco regulatório federal), para garantir a prevenção de novos desastres de grandes proporções.
Em dezembro de 2023, o presidente Lula sancionou a Lei 14.755, de 2023, que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB). A norma tem o objetivo de assegurar os direitos dos atingidos e reduzir os riscos impostos pelos empreendimentos e outros danos causados à população, como deslocamento forçado, perda de fonte de renda, contaminação da água, impacto na saúde mental , entre outras graves consequências para a saúde e o meio ambiente.
“É uma lei que deve ser aplicada com rigor por todos os governos, desde os governos municipais, até os governos estaduais e a instância federal. Ela é muito importante, porque caracteriza quem é alvo das barragens, quem é a população atingida. A política, ela diz quais são os direitos da população. Por exemplo, o direito a ser reparado pelas perdas, o direito à informação sobre os riscos, o direito de ter reassentamento, o direito de participar das negociações da reconstrução de suas condições de vida e de reduzir os riscos, explica Cervinski.
Nesse contexto, Regina Alvalá lembra que o envolvimento da população nesse momento da prevenção e da reparação dos territórios atingidos é fundamental. “Além das três instâncias do poder público, a gente precisa envolver também a sociedade. Porque, no final, os mais impactados são os seres humanos, é a população. Então, é fundamental que esforços sejam capitalizados para que essa gestão de riscos, que é mandatária, seja feita de forma mais organizada e mais participativa.